17.3.10

"Foi nesse preciso momento que..."

Nunca, durante os meus 12 anos de estudante passados em Aveiro, vivi perto da escola que frequentei. A partir do segundo ano passei mesmo a viver longe de qualquer paragem de autocarro. Dito isto não será difícil de entender que sempre dependi dos meus pais para chegar à escola e para voltar para casa. Alturas houve, porém, em que o meu pai passava imensas horas seguidas a trabalhar e a minha mãe (triste sina dos professores) trabalhava muito longe de Aveiro para me poder ir buscar à escola. Assim sendo, e considerando que na altura não tinha mais família em Aveiro e que os meus vizinhos eram reformados, pelo que não iam regularmente para o centro de Aveiro, restava apenas uma hipótese. O meu avô Flávio, com a profunda disponibilidade e a amabilidade para com os seus que sempre lhe conheci e das quais sempre me orgulhei, vinha de propósito de Águeda, por vezes só mesmo para me levar para casa, outras para me levar ao ténis ou à catequese. E foi esta última que me remeteu para o blog, para a recordação que queria partilhar.

Não raras vezes o meu avô Flávio ia buscar-me ao colégio, levava-me à Sé de Aveiro para as minhas "aulas de instrução religiosa" e, no fim, antes de me levar para minha casa, ou para casa dele em Águeda, passávamos numa pastelaria perto da Sé, então chamada Diagonal, onde lanchávamos, conversávamos, jogávamos às cartas ou jogos como o galo, a forca e outros do género. O meu preferido era um que consistia em completar os quatro lados de um quadrado, unindo pontos, dois a dois de cada vez, por turnos. Algo parecido com isto:

Ganhava quem completasse mais quadrados. Raramente conseguia ganhar, mas já nessa altura me deixava levar pela teimosia e insistia até conseguir (que o meu avô se fartasse e me deixasse) ganhar.

Numa dessas tardes, num dia de Outono/Inverno à portuguesa, com muita chuva, muito vento e, como de costume em Aveiro, muita trovoada, lá estava eu com o meu avô Flávio na Diagonal, a deglutir o habitual rolinho (bolo enrolado, com cobertura de açúcar e recheio de ovos moles, semelhante ao guardanapo) regado com o não menos habitual trinaranjus de maçã, e recordo-me que o meu avô começou a contar-me histórias sobre a trovoada e factos (a meu ver) interessantes, explicando-me como se formavam os raios ou a associação entre o som, o relâmpago e a distância a que nos encontrávamos do local onde o trovão havia caído. Não temia particularmente o fenómeno, mas incomodava-me o barulho. Seguimos para minha casa, quando havíamos terminado o lanche, e uma vez lá chegado fui jogar Virtua Fighter Kids, na Sega Saturn (jogo de porrada), enquanto o meu avô lia qualquer coisa, sentado no sofá. A trovoada não havia parado entretanto, pelo que tinha desligado a antena da televisão. O cenário em que combatia, certamente usando o karateca japonês Akira, o meu personagem favorito no jogo, era o da Sarah, uma das personagens principais em VFK. Este cenário era composto por um ringue de combate inserido numa arena, com um prédio de fundo, semelhante ao Parthenon grego e, também no fundo... trovejava! Recordo-me da cena ao pormenor porque, sem aviso prévio, caiu um trovão na Gafanha da Nazaré, no preciso instante em que um ribombava também no jogo virtual. Assumi que a proximidade fosse grande, porque não houve qualquer diferença entre o momento em que vi o relâmpago e aquele em que ouvi o estrondoso trovão - aconteceram em simultâneo. Foi nesse preciso momento que passei a ter medo da trovoada e ainda hoje a encaro com respeito pela sua violência e pela nossa impotência perante tal força bruta natural.

Soube ao fim do dia, pelo meu pai, que o relâmpago que me marcou para a vida, aquele raio fulminante que provocou em mim um medo que em poucas ocasiões senti, tinha incendiado um navio que estava atracado no porto da Gafanha e destruído parcialmente a tal embarcação pesqueira. Uma coisa que rebenta com um navio merece sempre o meu respeito e nesse dia a trovoada impôs-se lá bem alto no topo das coisas que merecem o meu respeito.

Cerca de meio ano mais tarde a TV onde estava a jogar na tal tarde "deu o berro", ao fim de cerca de 15 anos sem dar problemas. Ainda hoje estou convencido que foi do tal raio.

Nessa tarde, como em tantas outras, encontrei no meu avô uma fonte de segurança, de tranquilidade e de acalmia. E, entre muitas outras coisas, isto é parte do que o meu avô Flávio é para mim, é parte do que sou e do que fui, naquelas tardes da minha infância.

10.3.10

"Criancices"

Hoje isto atingiu-me: não vou voltar a ser criança! Nunca mais!!

Se normalmente recordo os tempos de criança com nostalgia e algum saudosismo, hoje senti mesmo desespero. Não quero parecer ingrato pelo que a vida me deu e pelo que tenho hoje, que, valha a verdade, não fica muito atrás dos tempos idos. Ainda assim, há coisas que me marcaram e que não vão voltar. Momentos que não se repetem, pelas especificidades próprias da vida, uma das quais a sua não repetição.

Não escondo que sou feliz e que estou imensamente grato pelo que vivi e pelo que estou a viver. No entanto sinto falta da liberdade que a inocência infantil nos dá. Recordo os tempos do secundário (ou de liceu, como dizem os "antigos") e lembro-me particularmente dos meus colegas que diziam querer ir para a universidade para terem a sua independência, porque só aí seriam livres. Lembro-me porque hoje, praticamente no fim dos meus estudos universitários, só posso contrariar essa tese dos efeitos libertadores da frequência do ensino superior. Liberdade? Liberdade era ter alguém que me acordasse que não o despertador! Ter alguém que me aconchegasse na cama todas as noites e ter um beijo de boa noite garantido, mesmo que o dia tivesse sido prolífero em asneiras!

Bem sei que nem todos tiveram uma infância como a minha, mas nada posso fazer em relação a isso se não lamentá-lo, porque hoje, aos 21 anos de idade, sei que não há (quase) nada como a infância, ser criança. Para os que tiveram a felicidade de, como eu, não passar por dificuldades e ter a atenção dos seus pais, certamente não será difícil compreender que não há outra fase da vida como aquela em que tudo era feito em função de nós e, no fundo, não tínhamos que nos sentir culpados por isso, porque é assim mesmo que deve ser! Porque quando somos pequenos, somos frágeis e ignoramos a dimensão da nossa fragilidade.

O mais que posso desejar agora é reviver a infância através dos meus próprios filhos, quando os tiver. Por tudo isto, tenho dificuldade em compreender como é que tanta gente, nos dias que correm, decide não ter filhos. Só me ocorre que todos tenham tido péssimas infâncias ou que sejam demasiado egoístas para querer que, pelo menos, mais uma pessoa possa viver uma infância. Tudo bem que hoje em dia é difícil conseguir ter as condições necessárias para ter um cenário de sustentabilidade doméstica ideal, mas o principal factor a considerar, na minha opinião, é o amor que se tem para dar aos próprios filhos. Acho que só uma situação de extrema miséria me poderia levar a desistir do desejo de ter filhos. Dizendo isto poderá parecer que os devia ter já, mas há que compreender que eu não ignoro a necessidade de concluir os estudos e estabilizar antes de se constituir família! Estou só a desabafar! O expressar de uma vontade que esconde um desejo impossível - o regresso à infância!



Guardo comigo recordações, imagens mentais de momentos que vivi, que fizeram e fazem de mim quem sou. Não posso regressar à minha infância, mas posso sempre registar em tom de "desabafo", de "story telling", algumas dessas recordações. Acho que, ao "deitá-las cá para fora", estou também a revisitá-las, pelo menos dentro do possível.