Nunca, durante os meus 12 anos de estudante passados em Aveiro, vivi perto da escola que frequentei. A partir do segundo ano passei mesmo a viver longe de qualquer paragem de autocarro. Dito isto não será difícil de entender que sempre dependi dos meus pais para chegar à escola e para voltar para casa. Alturas houve, porém, em que o meu pai passava imensas horas seguidas a trabalhar e a minha mãe (triste sina dos professores) trabalhava muito longe de Aveiro para me poder ir buscar à escola. Assim sendo, e considerando que na altura não tinha mais família em Aveiro e que os meus vizinhos eram reformados, pelo que não iam regularmente para o centro de Aveiro, restava apenas uma hipótese. O meu avô Flávio, com a profunda disponibilidade e a amabilidade para com os seus que sempre lhe conheci e das quais sempre me orgulhei, vinha de propósito de Águeda, por vezes só mesmo para me levar para casa, outras para me levar ao ténis ou à catequese. E foi esta última que me remeteu para o blog, para a recordação que queria partilhar.
Não raras vezes o meu avô Flávio ia buscar-me ao colégio, levava-me à Sé de Aveiro para as minhas "aulas de instrução religiosa" e, no fim, antes de me levar para minha casa, ou para casa dele em Águeda, passávamos numa pastelaria perto da Sé, então chamada Diagonal, onde lanchávamos, conversávamos, jogávamos às cartas ou jogos como o galo, a forca e outros do género. O meu preferido era um que consistia em completar os quatro lados de um quadrado, unindo pontos, dois a dois de cada vez, por turnos. Algo parecido com isto:
Ganhava quem completasse mais quadrados. Raramente conseguia ganhar, mas já nessa altura me deixava levar pela teimosia e insistia até conseguir (que o meu avô se fartasse e me deixasse) ganhar.
Numa dessas tardes, num dia de Outono/Inverno à portuguesa, com muita chuva, muito vento e, como de costume em Aveiro, muita trovoada, lá estava eu com o meu avô Flávio na Diagonal, a deglutir o habitual rolinho (bolo enrolado, com cobertura de açúcar e recheio de ovos moles, semelhante ao guardanapo) regado com o não menos habitual trinaranjus de maçã, e recordo-me que o meu avô começou a contar-me histórias sobre a trovoada e factos (a meu ver) interessantes, explicando-me como se formavam os raios ou a associação entre o som, o relâmpago e a distância a que nos encontrávamos do local onde o trovão havia caído. Não temia particularmente o fenómeno, mas incomodava-me o barulho. Seguimos para minha casa, quando havíamos terminado o lanche, e uma vez lá chegado fui jogar Virtua Fighter Kids, na Sega Saturn (jogo de porrada), enquanto o meu avô lia qualquer coisa, sentado no sofá. A trovoada não havia parado entretanto, pelo que tinha desligado a antena da televisão. O cenário em que combatia, certamente usando o karateca japonês Akira, o meu personagem favorito no jogo, era o da Sarah, uma das personagens principais em VFK. Este cenário era composto por um ringue de combate inserido numa arena, com um prédio de fundo, semelhante ao Parthenon grego e, também no fundo... trovejava! Recordo-me da cena ao pormenor porque, sem aviso prévio, caiu um trovão na Gafanha da Nazaré, no preciso instante em que um ribombava também no jogo virtual. Assumi que a proximidade fosse grande, porque não houve qualquer diferença entre o momento em que vi o relâmpago e aquele em que ouvi o estrondoso trovão - aconteceram em simultâneo. Foi nesse preciso momento que passei a ter medo da trovoada e ainda hoje a encaro com respeito pela sua violência e pela nossa impotência perante tal força bruta natural.
Soube ao fim do dia, pelo meu pai, que o relâmpago que me marcou para a vida, aquele raio fulminante que provocou em mim um medo que em poucas ocasiões senti, tinha incendiado um navio que estava atracado no porto da Gafanha e destruído parcialmente a tal embarcação pesqueira. Uma coisa que rebenta com um navio merece sempre o meu respeito e nesse dia a trovoada impôs-se lá bem alto no topo das coisas que merecem o meu respeito.
Cerca de meio ano mais tarde a TV onde estava a jogar na tal tarde "deu o berro", ao fim de cerca de 15 anos sem dar problemas. Ainda hoje estou convencido que foi do tal raio.
Nessa tarde, como em tantas outras, encontrei no meu avô uma fonte de segurança, de tranquilidade e de acalmia. E, entre muitas outras coisas, isto é parte do que o meu avô Flávio é para mim, é parte do que sou e do que fui, naquelas tardes da minha infância.